A janela da amargura
A amargura é uma raiz que brota e cresce no coração humano, semeada pelas brechas de uma ferida. Em certo momento ela ganha o poder de nos perturbar e contaminar nossos relacionamentos, mergulhando tudo no caldo do seu fel.
Ao entrar a arca do Senhor na Cidade de Davi, Mical, filha de Saul, estava olhando pela janela e, vendo ao rei Davi, que ia saltando e dançando diante do Senhor, o desprezou no seu coração. (II Samuel 6:16)
Você já deve ter ouvido falar de gente que está “na rua da amargura”... No episódio que quero tomar hoje para nossa reflexão, a amargura não está na rua, mas numa janela fria e distante. Na rua há festa, adoração, culto, avivamento, restauração. O rei Davi salta com todas as suas forças diante da arca da aliança que, depois de muitos anos, está sendo trazida de volta para Jerusalém. Todo o povo vive o êxtase desse momento tão especial. Entretanto, fria como uma pedra de mármore, Mical, esposa do rei, acompanha tudo com um coração crítico e fechado, na distância de uma janela palaciana, a “janela da amargura”.
Mical um dia se casara com Davi, cheia de sonhos e paixão. Estava disposta a enfrentar o mundo para ficar com o homem da sua vida. Entretanto, as coisas não acontecem como ela havia desenhado em suas expectativas. Davi, perseguido de morte pelo sogro Saul, tem que fugir sozinho por longo tempo e a moça apaixonada passa a dormir com a solidão. O abandono é tão explícito e duradouro que Saul, seu pai, a considera solteira novamente e a entrega a um outro homem, chamado Peltiel.
Não deve ter sido fácil para Mical aceitar tal situação e entregar-se a alguém que não conquistara o seu coração. Mas, pelo menos, o tempo mostra que este novo homem realmente a ama e, bem ou mal, ela consegue reorganizar o quebra-cabeça de sua vida...
Quando o cenário parece consolidado, uma surpresa. Com a morte de Saul, Davi assume o trono e volta para Jerusalém. Talvez querendo pagar uma antiga dívida ou, quem sabe, tomado pelo amor à mulher que por força das circunstâncias deixara para trás, o novo rei usa da sua autoridade e manda que alguns brutamontes a tirem de Peltiel e a tragam para ser novamente sua esposa. A cena é dramática. O pobre homem, vem por muitos quilômetros chorando após ela e só desiste de ir até o fim daquele caminho pelas ameaças que lhe são feitas.
Alguém poderia ver tudo isso como a restituição de um sonho antigo, um reatar digno dos melhores romances de Hollywood. Talvez a própria Mical o sinta dessa maneira. Entretanto, ao chegar no palácio, ela percebe que as coisas não são como aparentam e agora o coração de Davi tem que ser partilhado. Em sua longa fuga, sabe-se lá o motivo, Davi tomara duas outras mulheres para si: Ainoã e Abigail.
Talvez essa história nos ajude a entender por que Mical está na janela da amargura e não nas ruas do avivamento. Tendo sofrido tanto, tendo provado o gosto ruim do abandono, tendo sido desconsiderada em suas vontades, tendo que engolir a sensação de traição, seu coração se tornara amargo e agressivo. Mas a pergunta é: seria esta a sua única alternativa de vida? Não haveria para ela a hipótese de vencer os argumentos da história, enterrar o passado e desfrutar do que Deus estava fazendo naqueles dias?
Muitas pessoas vivem dominadas pelos rancores da alma, amarguradas pelo que lhes sucedeu. Têm todas os motivos do mundo para curtir o ressentimento e assumir a condição de vítimas, de injustiçadas. Os fatos em suas biografias
são inquestionáveis. Entretanto, viver sofrendo pelo que um dia ocorreu não é a única alternativa, e nem a melhor. A Palavra de Deus nos orienta: “Tende cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem” (Hb 12:15).
A amargura é uma raiz que brota e cresce no coração humano, semeada pelas brechas de uma ferida. Em certo momento ela ganha o poder de nos perturbar e contaminar nossos relacionamentos, fazendo com que tudo seja mergulhado no caldo do seu fel. Sua tirania é implacável. A não ser que recorramos à graça de Deus...
A verdade é que, diante daquilo que as pessoas e a vida nos impõem, temos não só a possibilidade, mas a responsabilidade de tomar uma decisão: vamos nos privar da graça e nos entregar à amargura ou vamos considerar o amor de Deus, o argumento da cruz e o poder regenerador do Espírito Santo para superar o passado e nos abrir para desfrutar, livres, do presente e do futuro que o Senhor preparou para nós?
Não é uma questão de sentimentos, mas de decisão. Se não compreendermos o grande amor do Pai, se não mergulharmos nas águas do Espírito, são não despertarmos para o fato que a maior injustiça não é o nos fizeram passar, mas a condenação de amargar o resto dos nossos dias pelo que já não existe mais, porque passou, vamos ficar aprisionados na janela da amargura, enquanto nas ruas do avivamento há um lugar para nós.